quinta-feira, 26 de março de 2009

A queda de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbosa


26 de Março, Dia do Livro Português.

Uma escolha difícil, entre tantas de grande mérito, que honram as nossas letras e nos dão um prazer imenso ao lê-las.

De Camilo Castelo Branco, a novela satírica publicada em 1866, apresenta-nos a vinda atribulada de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbosa morgado da Agra de Freimas e fidalgo provinciano, para o seio da vida política, onde acaba por se deixar corromper.

"Engoliu o morgado três frases de polpa, que lhe inflamavam os bócios, e foi ao jantar, sacrificando-se à regularidade das suas horas inalteráveis de repasto.
Ficaram o boticário e o professor de primeiras letras, e mais os lavradores, ruminando as palavras do fidalgo, e glosando-as de notas ilustrativas, ao alcance das capacidades.
Um dos mais graves e anciãos lavradores, regedor, ensaiador e ponto nos entremezes do Entrudo, exclamou:
- Aquilo é que dava um deputado às direitas! Um homem assim, se fosse a Lisboa falar ao rei, as contribuições haviam de acabar!
- Isso não, perdoará vossemecê, tio José do Cruzeiro - observou o mestre-escola - os impostos é necessário pagá-los. Sem impostos, não haveria rei nem professores de instrução primária (observem a modéstia da gradação!), nem tropa, nem anatomia nacional.
O mestre-escola havia lido, repetidas vezes no Periódico dos Pobres, as palavras autonomia nacional. Falhou-lhe desta feita a memória, lapso que não destoou em nenhumas orelhas, exceptuadas as do boticário, que resmungou:
- Anatomia nacional!
- Que é!? - perguntou ao farmacêutico um estudante de clérigo.
- Parece-me que é asneira! - respondeu o outro com certa indecisão.
Prosseguiu, concluindo, o mestre-escola.
- E, portanto, os tributos tio José do Cruzeiro, são necessários ao Estado como a água aos milhos. Ora, agora, que há muito quem bebe o suor do povo, isso há; e aqueles que deviam ser bem pagos são os que menos comem da fazenda nacional. Aqui estou eu, que sou um funcionário indispensável à Pátria, e receberia cento e noventa réis por dia, se não trouxesse rebatidos seis recibos a trinta e seis por cento, de modo que venho a receber seis e cinco! Que país!... O senhor morgado disse bem: estamos chegados aos tempos dos Dioclecianos e Calígulas!
O auditório já vacilava em decidir qual dos dois era mais talhado para ir falar ao rei a Lisboa, se Calisto, se o mestre-escola."

A Queda dum Anjo

quarta-feira, 25 de março de 2009

O Desaparecimento do Nariz

O Nariz, é um conto do absurdo, que o escritor ucraniano Nikolai Gógol publicou em 1836, na revista Sovreménnik, dirigida por Aleksandr Púchkin.

"À data de 25 de Março deu-se em São Petersburgo um acontecimento de inaudita estranheza."
Por um lado, o barbeiro Ivan Iákovlevitch, esperando degustar um delicioso pão quente, fica estarrecido ao encontrar, no meio do miolo, um nariz. Por outro lado, "um lugar perfeitamente raso" é o que Kovaliov descobre acima da boca, ao contemplar o seu rosto no espelho - nada poderia ser mais constrangedor e, perplexo, tentando ocultar tamanha bizarria, cobre o rosto e vai ao encontro do chefe da polícia. Não o encontrando, recorre à secção de anúncios do jornal.

Partindo do princípio de que terá sido ele a cortar acidentalmente o nariz ao seu cliente, Ivan Iákovlevitch tenta desfazer-se de tão estranho objecto, sem grande sucesso e passando por divertidas peripécias.

sábado, 21 de março de 2009

Guardador de árvores e versos


Já chegou a Primavera
vestida de alegre cor
tão verde, da cor da hera

traz uma esperança de amor.

A Primavera chegou!

Traz a cor do céu azul.

O Sol ameno levou

a tristeza para o Sul.



Quando chega a Primavera
fica mais belo o jardim.
Tão colorido. Oh! Quem dera
a Primavera sem fim.

Vou sentir na Primavera
aquele amor verdadeiro.
O amor que sempre espera

ser um dia, o derradeiro.

Alberto Caeiro, Guardador de Rebanhos

sexta-feira, 20 de março de 2009

Quase a chegar à estação da poesia




Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

Florbela Espanca

quinta-feira, 19 de março de 2009

Dia do Pai

olho à volta
em flecha sobre as coisas
à procura desse ladrão excepcional
que me roubou o livro inventado

pra me poupares o coração
à mágoa dos vivos
mas sei que é inútil
trago em alvo
apenas alfaias domésticas
com que trabalho a terra
aquela que escolhi
e sei que é inútil porque o mal tem asas
e só o vento nos salva
e nos transporta
ao lugar da árvore
junto ao rio onde me banharei três vezes
até que o galo cante
e me lembre do meu pai
a quem devo ceia e roupa branca


In As Vinhas de Meu Pai, Quasi, 2000

segunda-feira, 16 de março de 2009

Uma casa na árvore

Quando o jovem Collin Fenwick perde a sua mãe, acaba por ir viver para casa de duas tias excêntricas: Dolly e Verena.
Cedo o rapazito começa a acompanhar a tia Dolly e a empregada desta, Catherine, nas suas incursões ao campo, com o intuito de apanhar ervas.
A produção de medicamentos, por parte de Dolly, inspira Verena que pretende massificar essa actividade. Contrariada, a irmã de Verena foge de casa e corre a instalar-se, para indignação de todos, na casa da árvore, tendo por companheiros, Collin e Catherine, a quem outras figuras curiosas se vão juntar.

No final, a reconciliação traz a paz a toda a comunidade, mas os efeitos da vida na árvore ecoam nas vidas de cada um.

A Harpa de Ervas foi escrita por Truman Capote e recorda um período feliz da sua vida.
Poder-se-á dizer que se trata de uma história de amor e de conhecimento de si, escrita com uma ternura comovente.

"Mesmo quando chovia, era seu hábito deambular ao longo de um vulgaríssimo carreiro como se estivesse a passear num jardim, de olhos atentos em busca das preciosas plantas medicinais de aroma agradável, um raminho de poejo, de erva-cidreira ou de hortelã, ervas úteis cujas fragrâncias lhe perfumavam as roupas. Ela via tudo antes dos outros, e a sua única vaidade era essa, fazer questão que fosse ela, e mais ninguém, a apontar certas descobertas: as pegadas de um pássaro a desenharem no chão um círculo perfeito, o beiral de um telhado repleto de pingentes de gelo - estava sempre a chamar-me para ver uma nuvem em forma de gato, um navio feito de estrelas, um rosto humano na geada."
(Excerto da obra encontrado aqui.)

quinta-feira, 12 de março de 2009

Ao Sabor do Rio

Três homens, George, Harris e o narrador, na companhia do cão Montmorency, embarcam numa viagem onde o humor e a ironia navegam ao sabor das suas conversas, pelo rio Tamisa.

Jerome Klapka Jerome (1859-1927) deixou-nos obra de referência, mas Três Homens num Barco (já para não falar do cão) é o seu trabalho mais famoso, escrito num registo delicioso, em que o leitor se diverte ante os diálogos e as situações hilariantes que dão corpo a cada capítulo. Os três protagonistas reflectem pessoas bem reais, amigos próximos do autor e ele próprio. O simpático companheiro e fiel amigo terá existido também.

No sítio editorial podemos ler um parecer do autor, na versão vertida para a nossa língua por Luísa Feijó:

Mas é como autor de Três homens num barco (já para não falar do cão) que o público teima em lembrar-se de mim. Alguns críticos insinuaram que a vulgaridade do livro, a sua completa falta de humor, explica o sucesso junto do público – mas, desta vez, pressinto que isso não decifra o enigma. A arte pode ser má e ter sucesso durante algum tempo junto de algum público; mas não vai alargando o seu círculo durante quase meio século. Cheguei à conclusão de que, seja por que razão for, colho eu os louros de ter escrito este livro. Isto, se é que o escrevi – porque, na verdade, mal me lembro de o ter escrito. Lembro-me apenas de me sentir muito jovem e absurdamente contente comigo mesmo, por razões que só a mim dizem respeito. Era Verão, Londres é belíssima no Verão. Sob a janela eu tinha uma cidade de fadas coberta por um véu dourado de neblina, pois o local onde trabalhava era muito alto, acima das chaminés; à noite as luzes brilhavam ao fundo, e eu olhava lá para baixo como se estivesse a olhar para a caverna das jóias de Aladino. Foi nesses meses de Verão que o escrevi; pareceu-me ser a única coisa que podia fazer.
Uma leitura recomendada. :)

domingo, 8 de março de 2009

estás tão bonita é aquilo que quero dizer


"A Mulher Mais Bonita do Mundo"



estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram

flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.
estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as

coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.


José Luís Peixoto, in A Casa, a Escuridão

quinta-feira, 5 de março de 2009

À Margem

Depois de uma infância adocicada e tranquila, Lewis torna-se num perigo para si e para os outros, olhado com desdém e desconfiança, após a perda obscura e dramática da pessoa que mais amava. Ele é posto de parte por ser diferente, até encontrar alguém tão diferente como ele e que o regenera aos seus próprios olhos. Afastado é o primeiro romance de Sadie Jones. Perturbador, questiona o estado subvertido dos valores, aponta os prevaricadores e os que apenas julgam sê-lo, soma solidões, denuncia enganos.